PAIXÃO PELA VIOLÊNCIA
Passamos por mais uma Semana Santa. Por um ritual que se repete há séculos e a ladainha é sempre a mesma: o martírio de Jesus Cristo. É o ritual da dor, dos pontapés, da humilhação. É o ritual do agressor e do agredido. Qual dos dois é mais aplaudido?
As encenações que tomam conta de quase todo o mundo cristão nesta época têm forte apelo à aflição. A dor e a truculência superam o que o evento poderia apresentar de beleza estética. A dureza do mundo profano supera em muito o sentido sagrado que o ideal poderia ter. É uma repetição, ano a ano, de um ritual de sangue, de dor e selvageria que empolga milhões de pessoas. É parte do mundo cristão que delira com o sofrimento de Cristo. É o afã pelas chibatadas, pelos pontapés, pela grosseria, pela estupidez num prosaico espetáculo que faz soçobrar a racionalidade.
Como parte do povo gosta de sangue, do sofrimento alheio! Como parte do povo se embriaga com a iniqüidade, mesmo se vier protegida com o véu do mundo sagrado! Estranho, pois o sagrado não poderia compartilhar com o violento, com a dor. O sagrado, em princípio, deveria ser visto, em sua plenitude, como o mundo humano da serenidade, da coesão em torno do bem. O mundo sagrado deveria haver para aquietar a vida espiritual, para submeter o humano ao mundo do imponderável. O sagrado seria então, o caminho para a remissão humana.
Ao contrário, o profano, visto como o ambiente da perdição em si mesmo, parece ser aceito para acolher o dano, para dar vazão ao nocivo. É o mundo que existe para oferecer proteção às imperfeições da natureza humana.
Vistos assim, sagrado e profano afeiçoam-se ao maniqueísmo religioso e estão na justa medida da visão cristã, entusiasta da dualidade do mundo e da vida.
Mas a Sexta-Feira Santa parece ter um significado arrebatador para a Igreja. Além do seu incentivo há a concordância com seu sentido litúrgico. O ritual da via-crúcis como parte do seu calendário, cerrado de dor e de sofrimento é visto, na verdade, como momento da purificação, como último passo para sairmos dos escombros da impiedosa vida humana.
Estranho é que, a vida em si mesma, já oferece dor e sofrimento, mas o ritual da Via Sacra, momento de data marcada, com atos preparados para os aplausos e para a agonia nos apresenta, de maneira planejada, o martírio como complemento de nossas aflições. Numa peça que reúne sagrado e profano, piedade e grosseria. Num espetáculo que reúne sangue e dor, onde a brutalidade é o gesto que mais provoca alaridos.
É mesmo a fereza que embeleza o espetáculo da Sexta-Feira Santa. É ela que faz jorrar lágrimas, que provoca aplausos, que açoda os brados. Ali, a serenidade que o sagrado haveria de proporcionar, subjaz à bruteza, ao violento.
Mas ali, os gestos de brutalidade, valor intrínseco ao mundo profano, é compartilhado pelo sagrado. Uma clivagem que faz confundir o mundo dual num único orbe dominado pela violência.
Há de se perguntar a esta parte dos cristãos se Jesus Cristo não deixou outro legado, mais importante para a vida, que mais aglutine as pessoas em torno do bem? Será?
O que dizer então, das mensagens: “Em princípio, o Verbo”! Ou, “quem atira a primeira pedra”? As parábolas em Matheus nada revelam, a ponto de serem lembradas, cultuadas, até como espetáculo?
Mensagens inteligentes, vivas, e profundas que divinizam, que organizam e seduzem, ‘deixadas por Jesus Cristo são esquecidas, talvez por serem sublimes demais para serem acolhidas pela aridez espiritual e racional das massas.
Quaisquer outros legados de Cristo parece não ter importância, por mais sábios que tenham sido, por mais “sagrados” que tenham sido convertidos.
Mas o que importa mesmo para o clamor social é o bizarro, o grotesco. É o profano coagindo o sagrado que anima os fieis.
Ainda que para muitos haja convincentes justificativas cristãs ou filosóficas para o violento espetáculo da Sexta-Feira Santa, difícil é suportar um ritual que ano a ano nos mostra que é mais importante lidar com o violento do que com o que é inteligente. É mais importante um pontapé do que uma mensagem de carinho. É mais importante lidar com um ritual onde há agressores e agredidos que com momentos de sabedoria.
Assim, é que não podemos estranhar que a violência tem sido o grande apelo da arte moderna e a “mão que balança o berço” do cotidiano da vida social.
Nonato Menezes
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